segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Licença de condução de velocípedes

Há cinquenta anos uma bicicleta não era um utensílio de recreio ou de brincadeira, ou destinado a exercício físico nas manhãs dos dias de folga. Era, na maior parte dos casos útil ferramenta, único meio de transporte só acessível a alguns.
Também a sonhava para mim, mas os meios tardaram a chegar. Passava sem ela, que remédio…
Para o trabalho, que era ali, na Matrena, a três quilómetros, fazia-o a pé. (Depois, quando éramos já todos ricos, cada um ia no seu automóvel)
Para casa da namorada, lá mais adiante, na ponta da Guerreira, ia também a pé; uma ou noutra vez na carreira que vinha de Abrantes. Era novo e habituado com estava, dominava bem a distância.
Mas que a desejava, desejava. Às vezes dava comigo a fazer contas sobre quanto deixaria de gastar em solas de sapatos se fizesse estes trajectos de bicicleta. Ficava-me por aí, pelo desejo, porque os meios não davam para mais.
Poupando tostão daqui ou dali, consegui juntar o necessário para comprar o desejado objecto. Era o adquirir de uma certa independência.
Faltava agora licença para a sua utilização. Para o efeito dirigi-me à Câmara num dia vinte e seis de Dezembro, tenho-o bem presente.
Atendido correctamente – pareceu-me, pelo menos - o funcionário fez-me algumas perguntas acerca de sinais de trânsito. Tive azar com as que me calharam, já que nem um sinal daqueles conhecia. É verdade que ninguém me tinha dito que tal teste se fazia e, por isso, eu não estudara minimamente o código.
A certa altura diz-me o funcionário, adaptado a examinador: - A tua sorte é ter sido ontem dia de Natal!
A mim, pouco me importava a razão porque ele me passava a licença de condução de velocípedes. Eu só queria tê-la na mão. Daí, muito obrigado e ala, que se faz tarde.
Vim a saber que, de facto, tivera sorte. Outros eram obrigados a dar voltas e voltinhas cá em baixo, na praça, para gáudio dos funcionários que observavam o espectáculo das janelas: - Agora p’rá direita! Vire agora p’rá esquerda! Agora faça um oito… faça um oito!

domingo, 10 de agosto de 2008

Manhãs de domingo

Quando, nas manhãs de domingo, acordo, a claridade infiltrando-se pelas frinchas como quem me desperta para o dia que aí está, não bule um ruído, não se ouve uma voz, não passa uma viatura.
Parece cumprir-se, de modo integral, um dos mandamentos da Santa Madre Igreja, tal como o aprendi em miúdo, na catequese, o qual recomendava e impunha dever o cristão abster-se de trabalhos servis aos domingos e dias santos de guarda. E que bem que me apetecia, nesses tempos, tal abstenção…
Pois agora aí está, e aos domingos e dias santos de guarda, só tarde se inicia o ruído e desperta o bulício: uma porta ou uma janela que se abrem, já o sol vai alto; uma mulher ainda sem os preparos que hão de lhe realçar a beleza, ou disfarçar a falta dela; um homem de fato de treino – que de treino só se lhe aproveita o nome – e que se espreguiça como quem sacode os restos da noite. Mais tarde, em cima da hora do almoço ou já depois da família ter almoçado, vão surgindo rapazes e raparigas, bocejando, os olhos mais fechados do que abertos, chegados a casa após as voltas da noite, quando o sol já se anuncia perto, prestes a romper a neblina da madrugada.
E enquanto penso e dou mais uma volta na cama, na tentativa de disfarçar as dores que o desgaste dos ossos já provoca, vou passando em revista as manhãs dos domingos doutros tempos. Onde isso já vai…
Não havia, então, semana-inglesa e era inimaginável a semana-americana que veio institucionalizar a paragem ao sábado. O domingo era o dia único de descanso. Todos os restantes, sábado integral incluído, eram consumidos nas fábricas, nas oficinas, nas obras, oito horas por dia, quando não de sol-a-sol.
Ia-se à missa, oportunidade não só para cumprir o rito religioso mas também para encontro com vizinhos e amigos, troca de impressões, acerto de problemas. Mas antes disso, manhã cedo, já se passara pela horta a ver como estavam as “novidades” ou aproveitando para fazer a rega.
E já a mulher punha a roupa da semana de molho, se fosse caso da sua necessidade para o dia seguinte.
Os rapazes davam uma volta a saber onde havia bailarico ao fim da tarde, ou passando, como que por acaso, a mostrar-se a rapariga que lhes interessasse.
E as raparigas davam ajuda à mãe na preparação do almoço e embelezavam-se o melhor que podiam, interessadas em que alguém as visse à saída da missa.
Aliviando a tendinite do ombro direito, mudo de posição uma vez mais. E medito em como são diferentes, agora, as manhãs de domingo.
As minhas também. “Dá Deus nozes a quem não tem dentes”; a mim são as dores que não me deixam preguiçar na cama todo o tempo que me vai sobrando. Tempo que vem fora de tempo, no desconserto da nossa vida.

O dinheiro para a mobília

Estava-se nas vésperas do casamento. Havia pouco com que festejar, mas o entusiasmo pelo dia que aí vinha, não era menor por isso.
Não era preciso acabar, à pressa, casa nova, mas importava embelezar, até onde era possível, a velha, que receberia os noivos. A azáfama era grande e o tempo, em tais alturas, sempre escasso.
A boda far-se-ia em casa da mãe. Já se faziam anunciar banquetes em bons e caros restaurantes, mas os meios não permitiam sonhar tão alto. Os convidados não eram muitos e também não estavam habituados a festejos de muito requinte. Era a família, a qual bem sabia quanto sacrifício a festa custava, não obstante a alegria com que se fazia.
Naquele tempo era assim. Na minha boda, como na de muitos mais, limitávamo-nos ao que havia; por mim cheguei onde consegui chegar.
A casa era modesta e o recheio ainda mais. Mas não importava; para nós, valia o mesmo. Evitara aventuras e despesas que não saberia como pagar. Ainda assim, o homem que me vendera a escassa mobília, pusera-me à vontade para que só lhe pagasse depois do casamento, e eu aproveitei a oferta. Era cerca de cinco contos e o dinheiro ficaria lá em casa a aguardar a passagem da festa. Nunca se sabia se iria surgir alguma necessidade.
No frenesim da arrumação da casa de onde iria sair dois dias depois, e da sua preparação para alojar os convidados, lavou-se, caiou-se, fez-se limpeza. Deu-se volta a gavetas e armários e levou-se tudo que não era necessário. Foi para o lixo o que ao lixo pertencia e os papéis velhos e inúteis foram lançados para dentro do forno de fazer pão, para queimar oportunamente.
Num momento de reflexão para avaliar o ponto dos preparativos, lembrei-me do dinheiro que havia de pagar a mobília e um pressentimento, quase certeza, fez-me correr para a gaveta onde o havia guardado. Mas a gaveta estava vazia. O dinheiro fora, com os restantes papéis, caminho do forno. Perguntei por ele, desvairado.
Não era para menos: aqueles cinco contos eram tudo quanto tinha.
Corremos para o forno. Felizmente ninguém se lembrara de acendê-lo. E as cinco notas de mil escudos, lá estavam, direitas, arrumadas dentro do envelope.
Passado o dia do casamento, terá sido das primeiras coisas que fiz, entregá-las ao vendedor da mobília. Para susto, já chegara.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Peúga branca

Noutros tempos, quem participasse num exame, fazia-o de casaco e gravata e não se queixava. Era a moda – ou a imposição – mesmo que o suor escorresse em fio pelo rosto, pois ar condicionado era coisa por inventar cá por estas bandas. Outra postura era falta de respeito pela dignidade do acto.
Hoje, consoante a temperatura e o estado de espírito, despe-se cada qual o mais que pode. Impedi-lo é falta de respeito pela dignidade de cada um.
Noutros tempos as mulheres queriam-se fortes, as pernas grossas para suportar o peso da vida, ancas largas que abrigassem os filhos por nascer, pescoço robusto que suportasse firme o cântaro da água, o alguidar da roupa ou o molho da lenha, seios desenvolvidos tidos como garantia de que aos filhos não faltaria o leite. Não fosse assim e suportariam o epíteto de “pau-de-virar-tripas” e como consequência o casamento podia não passar de miragem.
Hoje, a moda impõe pouca carne e fazem-se todos os sacrifícios para que a semelhança da rapariga se aproxime mais do pai do que da mãe em matéria de estrutura corporal. E é vê-las, quando um arredondar de formas lhes dá, porventura, mais beleza, preocupadas em encontrar a fórmula de pôr o osso quase à vista.
Vivemos, alguns de nós, a época em que o cabelo dos homens não deveria tocar nas orelhas. Depois, foram outros os tempos, e bonito eram as guedelhas e a barba numa promiscuidade que não permitia saber onde começava o couro cabeludo e terminava a pilosidade do rosto. Agora abundam as carapaças rapadas e lustrosas. E pensar no sofrimento causado pela acção da máquina zero quando na tropa, um pé em falso, impunha “uma carecada”.
Há cerca de quarenta anos, num daqueles ataques fulminantes característicos de todas as modas, fomos forçados a pôr de parte as calças que tínhamos, porventura guardadas para acto cerimonioso, para passarmos a usá-las à “boca-de-sino” que é como quem diz, alargadas a partir do joelho para acabar a cobrir totalmente o sapato, Proporcionavam um movimento oscilante, como se levássemos umas vassouras dependuradas a partir de entre-pernas. Magnífico!
Consoante os ditames da moda, as mulheres ora repudiaram o fato curto tapando-se até ao tornozelo, ora se contrariaram fazendo encolher a saia até latitudes inimagináveis algum tempo atrás. E sempre dando como ridículo o modelo anterior.
Nesse sobe-e-desce, alarga-aperta, tapa-e-destapa, cada vez é maior o espaço à vista. E sempre na moda.
Uma geração atrás, rapaz de camisa às flores ou berloques no pescoço arriscava-se a comentários pouco abonatórios. Era a moda disfarçada de decoro, e os homens queriam-se feios e a cheirar a macho.
Hoje ditam que está fora de tempo rapaz que use calça vincada e colarinho engomado e não aveze dois ou três penduricos agrafados nas orelhas, nas sobrancelhas ou, algures em ponto mais recôndito, e não seja consumidor da última novidade em água-de-colónia e gel hidratante e com passagem por instituto de beleza.
Os bons costumes e a moral ensinavam que às meninas não se tocava com um dedo. Elas eram as futuras mães, as esposas dedicadas, as irmãs sempre presentes, a pureza feita gente. Por serem sérias os seus ouvidos não ouviam; por serem puras os seus lábios não emitiam palavrão; por serem castas ruborizavam ao mais leve galanteio. Hoje manda a igualdade que utilizem a mesma linguagem desbragada dos rapazes, que os persigam como era apanágio deles, que os conquistem se eles tardam em mexer-se, atirando para trás das costas o medo, o preconceito, os olhares críticos de quem é de outro tempo.
É assim: chegada uma moda, seguimo-la subservientes, convencidos, de novo, que agora é que está bem. E rimos sempre da triste figura que fizemos na observância da anterior. Mais tarde a coisa repete-se.
Vejamos: décadas atrás comprámos peúgas brancas, marca e moda daquela época. Rapaz com brio sentava-se e puxava ligeiramente a calça de modo que o imaculado branco da peúga pudesse ver-se, evoluindo a partir do sapato. Em feiras e mercados comprámos peúgas aos molhos, pois a delicadeza da cor não permitia uso prolongado Mas logo teriam que vir os timoneiros dos usos dizer que meia branca em pé de homem era uma vergonha.
Cumprimos o ditame e saltámos do branco para o preto porque também nós, achámos este mais digno da postura masculina. E fizemos anos de peúga preta.
Agora, quem sabe disto, vem de novo dizer que, afinal, não há como a peúga branca. Com calça ou calção, de robe ou em cuecas, a peúga branca é a garantia da limpeza: ou está branca ou está suja.
Vai valer-nos os maços que temos ainda acumulados nas gavetas das antiguidades, porque tivemos pena de desfazer-nos delas. E, pelo sim pelo não, vamos guardar as pretas nas mesmas gavetas.

No arrumar da palha

No final do verão, amadurecido o trigo, trazia-se para a eira e, à falta de outros meios, juntavam-se os homens da família, os quais, postados em duas filas, frente a frente, batiam a palha com os manguais para que o grão se soltasse e também para cortar a palha que havia de alimentar os burros ao longo do Inverno.
Não se podendo dizer que era comunitário, o palheiro feito em arrecadação do patriarca da família, já os animais serviam quem deles necessitava. Não se regateava, por isso, a colaboração para a malha do cereal.
Já o arrecadar da palha, se o tempo não prenunciava risco de trovoada, ficava na eira ao cuidado das mulheres que, pouco a pouco a arrumavam.
Todos os braços eram úteis e as crianças colaboravam também nesse serviço.
Joel e Silvina iniciadas as férias, estavam disponíveis para esse trabalho que, segundo a família, não quebrava osso. Um e outra, por força dos anos perdidos em tempos tais que, mais prioritário que a escola era a ajuda no trabalho do campo, tinham terminado, havia pouco, a instrução primária com doze anos feitos.
Camaradas de brincadeira, vivendo porta com porta, dispensavam perda de tempo na procura um do outro, fosse para brincar ou para os trabalhos que lhes destinavam. As mães entendiam-se e requisitavam-nos sem problemas: Joel, anda cá! Silvina, traz aí a manta e vão começar a trazer a palha da eira!
E eles aí iam. Sem alergias, que ao tempo não havia – quando muito, coceira, nada que umas chapadas de água não resolvesse – ei-los rebolando em cima da palha, até que alguém chamava a atenção: Isso é para fazer! Parem lá com a brincadeira!
Com a forquilha puxavam a palha para cima da manta e lá iam, segurando-lhe nos quatro cantos, despejá-la na arrecadação. Trabalho que já conheciam de outros anos, quando era obrigação de irmãos mais velhos; calhava-lhes agora a eles.
Entre correrias, saltos e risos, a eira foi-se despejando e a palha ficou arrumada na arrecadação. Joel e Silvina dançaram sobre ela, saltaram de mãos dadas, ora caindo, ora levantando. Até que Joel caiu sobre a amiga, os rostos tocando-se.
Todo o seu corpo estremeceu numa sensação nova para ele e, instintivamente, puxou-a para si. Silvina, sem saber bem porquê afastou-se com delicadeza ao mesmo tempo que puxava para baixo o vestido que subira, deixando-lhe destapadas as coxas de menina.
Não disseram nada, não se justificaram, não pediram desculpas – que desculpas não havia a pedir – e seguiram para casa, terminado que estava o trabalho para esse ano.
Joel, como que desconhecendo-se a si próprio, sonhou com o ano seguinte, quando houvesse que repetir-se a arrumação da palha. Mas Silvina terminara ali as suas brincadeiras inconsequentes com o amigo.
A inocência de ambos voara sem que eles soubessem como, com aquele último rodopio sobre a palha de trigo.

O rato e as tias

Naquele dia o rato roía os restos que a tia deixara na pia

Estava contente e ferrou um dente na parte da frente de um bife ainda quente.

Não viu que lá vinha a gata fuinha, da casa, rainha, que à pia chegada, sem fazer mais nada, vai co’a pata: zás, e atira o rato lá bem para trás.

Gemeu o coitado, dorido e apertado, assim entalado e ainda engasgado com o bife que a gata, manhosa, com a pata, lhe roubou. Gulosa!

Do ínfimo rato fez gato-sapato, e o pobre à coca, de água na boca, a um canto encolhido, nem deu um gemido quando a gata ladrona, miou para a dona antes de ir embora, as unhas de fora, o olhar velhaco e segura de si, disse para a tia: está um rato aqui, no canto da pia!

Foi então que a dona, pegou na esfregona, saltou e gritou, p’ra mana Maria: ‘stá um rato na pia!

E o rato a tremer, sem mais que fazer, nem quem lhe acudir, desatou a correr, toca a fugir!

Já o gato contente vai ferrando o dente na carne ainda quente que o rato, valente, ainda cheirou, mas não arriscou deixar-se ficar, e as tias lá vão, esfregona na mão, batendo no chão, p’ro bicho sair do buraco aberto que em horas de aperto, é refúgio certo.

De dente afilado, já descansado, e bem seguro depois de passado para lá do muro, vai rindo daí: ih,ih…ih,ih,ih ao vê-las saltar e ouvi-las gritar: ratinho anda cá, e ele onde está, vendo as artimanhas, chia então de lá: Aqui não me apanhas, aqui não me apanhas!!

O cabelo do engenheiro

Entrei na barbearia e, como de costume, perguntei quantos interessados aguardavam vez e qual era o último. Prontamente o senhor João me esclareceu:
- Tem três à sua frente e mais o que está na cadeira.
- Eu espero! respondi. E peguei num jornal, por força de hábito, porque como quase sempre, era de três semanas atrás.
Os clientes iam conversando, de tudo e de nada como é vulgar em barbearia que se preze. De futebol e das tropelias dos árbitros; da política e dos tachos na mesma; da agricultura e da falta ou do excesso de água; de doenças e de remédios que são cada vez mais caros. Conversa sempre alimentada pelo mestre barbeiro que pergunta e responde sem deixar de manobrar a tesoura ou a máquina.
Só algum tempo depois reparei na pessoa que estava sentada na cadeira e que era minha conhecida.
Terminado o trabalho o cliente levantou-se e dirigiu-se-me:
- Como está?
- Estou bem, senhor engenheiro! respondi. E conversámos uns minutos sobre assuntos passados que ambos conhecíamos.
- Então muito boa tarde, despediu-se ele de todos, e saiu.
O senhor João continuou o trabalho e quando chegou a minha vez, accionou a rotina de sacudir a almofada e ajeitou-me a toalha no pescoço. Já, então, não havia mais ninguém na barbearia.
- Aquele senhor que estava na cadeira quando entrou, é engenheiro? Perguntou-me como se lhe tivesse acontecido algo de incomum.
- É sim senhor. Trabalhámos na mesma empresa!
- Não sabia. Veja como são as coisas, já vem aqui há bastante tempo e eu não sabia!
- Acontece, não é senhor João?
Não tenho a certeza, mas estou em crer que mestre João terá comentado lá para com o seu íntimo, enquanto listava mentalmente a clientela: - Engenheiro, hã…!

quinta-feira, 31 de julho de 2008

O dinheiro para a mobília

Estava-se nas vésperas do casamento. Havia pouco com que festejar, mas o entusiasmo pelo dia que aí vinha, não era menor por isso.
Não era preciso acabar, à pressa, casa nova, mas importava embelezar, até onde era possível, a velha, que receberia os noivos. A azáfama era grande e o tempo, em tais alturas, sempre escasso.
A boda far-se-ia em casa da mãe. Já se faziam anunciar banquetes em bons e caros restaurantes, mas os meios não permitiam sonhar tão alto. Os convidados não eram muitos e também não estavam habituados a festejos de muito requinte. Era a família, a qual bem sabia quanto sacrifício a festa custava, não obstante a alegria com que se fazia.
Naquele tempo era assim. Na minha boda, como na de muitos mais, limitávamo-nos ao que havia; por mim cheguei onde consegui chegar.
A casa era modesta e o recheio ainda mais. Mas não importava; para nós, valia o mesmo. Evitara aventuras e despesas que não saberia como pagar. Ainda assim, o homem que me vendera a escassa mobília, pusera-me à vontade para que só lhe pagasse depois do casamento, e eu aproveitei a oferta. Era cerca de cinco contos e o dinheiro ficaria lá em casa a aguardar a passagem da festa. Nunca se sabia se iria surgir alguma necessidade.
No frenesim da arrumação da casa de onde iria sair dois dias depois, e da sua preparação para alojar os convidados, lavou-se, caiou-se, fez-se limpeza. Deu-se volta a gavetas e armários e levou-se tudo que não era necessário. Foi para o lixo o que ao lixo pertencia e os papéis velhos e inúteis foram lançados para dentro do forno de fazer pão, para queimar oportunamente.
Num momento de reflexão para avaliar o ponto dos preparativos, lembrei-me do dinheiro que havia de pagar a mobília e um pressentimento, quase certeza, fez-me correr para a gaveta onde o havia guardado. Mas a gaveta estava vazia. O dinheiro fora, com os restantes papéis, caminho do forno. Perguntei por ele, desvairado.
Não era para menos: aqueles cinco contos eram tudo quanto tinha.
Corremos para o forno. Felizmente ninguém se lembrara de acendê-lo. E as cinco notas de mil escudos, lá estavam, direitas, arrumadas dentro do envelope.
Passado o dia do casamento, terá sido das primeiras coisas que fiz, entregá-las ao vendedor da mobília. Para susto, já chegara.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A obra do sétimo dia

Há muito, muito tempo, tanto que já ninguém se lembra e ao certo também não sabe quando, Deus povoou a terra com tudo quanto lhe deu na veneta. Era assim: não havia nada e Ele percebendo o jeito que tinha, criou, criou, criou... e encheu o planeta.
Mais ou menos, é bom de ver; outros vieram depois e também criaram, criaram, criaram... mas não inventaram coisa nenhuma. Umas cópias só. Mas sempre convencidos de que aperfeiçoaram de alguma forma o original, mais não fizeram do que reles sucedâneos de um modelo único.
Na altura, Deus fez os peixes e espalhou-os nas águas; soprou as aves para que se habituassem a viver nos céus; e pespegou o resto da criação na terra firme. E disse à multidão que acabara de inventar: governai-vos, que era como quem dissesse, cabem aí todos, arrumem-se, façam pela vida, mas não me venham com chatices, que se não fosse eu, continuariam eternamente menos que nada.
Cada um no seu canto, viveram assim, sossegados, quietinhos, muito, muito tempo. Não desarrumaram nada do que o criador tinha composto, e até tremiam se tinham de tocar-lhe. Não conspurcaram nada; não destruíram nada.
E quando se comiam uns aos outros, faziam-no no estrito cumprimento das ordens recebidas: Crescei! e também: Multiplicai-vos!
Um dos seres criados, - segundo rezam as crónicas, o último a ser criado – cedo se julgou superior a todos os outros, vivessem eles no ar, na água ou na terra. Tudo indicia que tinha razão para pensar assim, tais as mordomias de que beneficiava, ao ponto de Deus lhe ter dado um jardinzinho com horta e pomar agregados, onde só tinha que estender a mão para obter tudo o que queria. Ora, quem é que, em tais condições, não havia de achar-se rei da criação?
Mas logo, aí, fez asneira, porque, tudo o que queria, como atrás se refere, não era bem assim, visto que o Criador lhe impôs limites que ele não viu com bons olhos, e vai daí, sem ordem deitou mão à fruta que não lhe pertencia e zás! foi corrido e lá se foi a boa-vida.
Ainda assim, não se acabou ali a sua mania de superioridade. Condenado a ter que suar se quisesse comer, achou que havia de encontrar tansos à sua volta e, desse modo, foi procurando forma de ludibriar o parceiro; se fosse possível, que suassem outros para lhe satisfazer a gula e as manhas. De qualquer modo, havia de encontrar forma de se servir.
Olhou, por exemplo, para o mar e vendo a riqueza que ali estava, entrou por ele dentro – ou mandou entrar, que era mais fácil e menos perigoso - para que não lhe faltasse o peixe que lhe foi enchendo a pança e a carteira. Viu florestas verdejantes, prenhes de madeiras ricas que lhe dariam fortunas e sacou delas tudo quanto pôde, a pretexto das necessidades dos povos, e tornou as florestas em desertos. Cheirou-lhe a petróleo, indispensável à satisfação de necessidades que ele mesmo criou e então furou o chão e contaminou os ares a ponto de, aceleradamente, ir tornando a terra inabitável. A sua sanha exploratória fez fugir a água e transformou os rios onde os peixes abundavam nas águas que deleitavam os homens, em esgotos pútridos e focos de envenenamento para homens e para peixes.
Mas essa desgraça, que Deus certamente não terá previsto, logo deu nova ideia aos espertos: se a água não presta, recolhe-se a que ainda resta e vende-se. E foram-se a fontes e lagos e engarrafaram-na e venderam-na a quem tem sede, pelo preço que lhes apeteceu.
E foi assim que os bens que o bom Criador deixou, foram aproveitados pelos espertos e criativos. Aos outros mais não resta do que pagar para servir-se, servindo-os.
Vai restando, por enquanto, o ar que se respira. Mas, cada vez mais envenenado, não tardarão a engarrafa-lo e quem não quiser “bater o pernil” com falta do dito, há-de pagá-lo bem pago. Os oportunistas provarão que só o seu é bom, ao mesmo tempo que farão tudo para poluir o do vizinho.
Mas alegremo-nos porque restam ainda algumas obras da criação, certamente porque não conseguiram deitar-lhe a mão. Não será por muito tempo, esperem-lhe pela pancada.
É o caso do vento, por exemplo. Não fosse ele indomável e já o teriam encerrado entre quatro paredes, não deixando a mais leve brisa para quem não fosse do clube da ventania. E entretanto, o negócio das ventoinhas subiria em flecha.
E o sol, se pudessem haviam de açambarcá-lo e de nada valeria o desabafo do filósofo: ”não me tires o que não me podes dar”, ou a afirmação de que “o sol quando nasce é para todos”, pois já alguém teria descoberto que apanhar luz do sol não passa de um vício, e como quem não tem dinheiro não tem vícios...
E o que dizer dos raios e dos trovões? Não descobriram ainda forma de apropriação do barulho das trovoadas, talvez porque não é dos ruídos mais simpáticos, mas não fosse o medo de guardar em casa os raios que rasgam o céu de alto a baixo e já alguém teria encontrado forma de lhes reter a energia, para venda em frasquinhos ou granadas de arremesso.
Deus Nosso Senhor já terá dito lá com os cabelos brancos do seu bigode: Porque não dei eu por terminada a criação ao quinto dia?

terça-feira, 29 de julho de 2008

"Gaita! S'a lixe!"

Éramos seis rapazes entre o grupo de primos e primas que vivíamos à volta da casa do avô.
Por ali brincávamos, rebolando na terra do quintal, balouçando-nos nos ramos das figueiras à cata de figos do paraíso ou trepando às oliveiras na procura dos ninhos que os pardais faziam nas locas das arvores.
Notava-se alguma diferença na liberdade em que, uns e os outros, gastavam o seu tempo de brincadeira. Havia quem estivesse sempre na mira da requisição para isto ou para aquilo. Essa “rifa” era a que calhava, sobremaneira, ao meu irmão Manuel. Porque era o mais velho, porque era filho do pai que era, porque era preciso que se habituasse a trabalhar, toda a gente tinha o direito de lhe interromper a brincadeira, fosse para ajudar o Tio Zé na rega da horta, fosse para ir ao encontro do tio Miguel que vinha de Tomar montado na égua e não se precavera com guarda-chuva para o temporal que aí estava, fosse para ir despachar uma encomenda à estação.
- Manel, anda cá! E ele ia.
- Mexe-te! Acrescentavam, se não corria de imediato atrás da ordem.
À falta de melhor com que entreter, criáramos como brincadeira, uma imitação de negócio. Fabricávamos as notas – pedaços de papel com as importâncias escritas – e recortávamos dos jornais (escassos, nesses tempos) objectos que seriam os sujeitos do nosso negócio. Entre eles, dávamos preferência aos automóveis publicitados na imprensa. Então, cada um de nós tinha o seu património que negociava uns com os outros.
Sentados no chão com a mercadoria exposta, dávamos vazão à nossa veia economicista. Claro que, melhor, estava aquele que conseguia mais jornais de onde recortasse os automóveis.
Era brincadeira de miúdos com idades entre os onze e os seis anos.
Uma tarde lá estávamos todos reunidos, quando, sem pedir licença, o avô ordenou:
- Manel, vai l’além para ires com a Matilde à Asseiceira!
O Manuel sabia que tinha de ir, mas incomodava-o saber que era, ali, o pau-para- toda-a-obra. Entre dentes não se conteve:
-Gaita!
Só nós ouvimos o desabafo pois o mensageiro dera a ordem e abalara.
E ele num gesto de revolta, sacudiu as mãos e espalhou pelo ar os papéis que segurava.
- Que se lixe! E abalou amargurado, a cumprir o recado.
Parece que só o Armando, que era o mais novo, não entendeu aquele gesto, e nos seus seis anos, deixou uma censura ao primo:
- Gaita s’a lixe? Vende coisas e faz dinheiro!