terça-feira, 29 de julho de 2008

"Gaita! S'a lixe!"

Éramos seis rapazes entre o grupo de primos e primas que vivíamos à volta da casa do avô.
Por ali brincávamos, rebolando na terra do quintal, balouçando-nos nos ramos das figueiras à cata de figos do paraíso ou trepando às oliveiras na procura dos ninhos que os pardais faziam nas locas das arvores.
Notava-se alguma diferença na liberdade em que, uns e os outros, gastavam o seu tempo de brincadeira. Havia quem estivesse sempre na mira da requisição para isto ou para aquilo. Essa “rifa” era a que calhava, sobremaneira, ao meu irmão Manuel. Porque era o mais velho, porque era filho do pai que era, porque era preciso que se habituasse a trabalhar, toda a gente tinha o direito de lhe interromper a brincadeira, fosse para ajudar o Tio Zé na rega da horta, fosse para ir ao encontro do tio Miguel que vinha de Tomar montado na égua e não se precavera com guarda-chuva para o temporal que aí estava, fosse para ir despachar uma encomenda à estação.
- Manel, anda cá! E ele ia.
- Mexe-te! Acrescentavam, se não corria de imediato atrás da ordem.
À falta de melhor com que entreter, criáramos como brincadeira, uma imitação de negócio. Fabricávamos as notas – pedaços de papel com as importâncias escritas – e recortávamos dos jornais (escassos, nesses tempos) objectos que seriam os sujeitos do nosso negócio. Entre eles, dávamos preferência aos automóveis publicitados na imprensa. Então, cada um de nós tinha o seu património que negociava uns com os outros.
Sentados no chão com a mercadoria exposta, dávamos vazão à nossa veia economicista. Claro que, melhor, estava aquele que conseguia mais jornais de onde recortasse os automóveis.
Era brincadeira de miúdos com idades entre os onze e os seis anos.
Uma tarde lá estávamos todos reunidos, quando, sem pedir licença, o avô ordenou:
- Manel, vai l’além para ires com a Matilde à Asseiceira!
O Manuel sabia que tinha de ir, mas incomodava-o saber que era, ali, o pau-para- toda-a-obra. Entre dentes não se conteve:
-Gaita!
Só nós ouvimos o desabafo pois o mensageiro dera a ordem e abalara.
E ele num gesto de revolta, sacudiu as mãos e espalhou pelo ar os papéis que segurava.
- Que se lixe! E abalou amargurado, a cumprir o recado.
Parece que só o Armando, que era o mais novo, não entendeu aquele gesto, e nos seus seis anos, deixou uma censura ao primo:
- Gaita s’a lixe? Vende coisas e faz dinheiro!

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