segunda-feira, 28 de julho de 2008

Quando já somos nós o passado

Conheci a minha terra quando as ruas não eram ainda classificadas como tal, na sua maior parte tituladas de casais.
Veio depois, com o progresso, a distribuição de correio, e com ela a necessidade de se baptizarem ruas e becos. Daí que quem tenha para baixo de quarenta anos, ignore, em parte, os nomes por que esses casais eram conhecidos.
Durante metade da minha vida identificava-os assim: Casal dos Fangueiros, Casal dos Salvadores, Casal das Peraltas, Casal do Mota, Casal dos Carlotos, Casal dos Rafaéis.
Cada um destes casais terá a sua história e explicação para o respectivo nome. Interessa-me porém, e por agora, o último: Casal dos Rafaéis, por ser aquele a que estou ligado por laços e tradição familiares.
De Casal dos Rafaéis foi transformado em Rua de D. Gastão, antes ainda da atribuição de números de polícia à aldeia. Não sei de onde veio este D. Gastão, não faço qualquer ideia quem foi ou que ligação terá tido com o sítio. Mas ela existiu, de certo, visto que aparece em documentos oficiais, não sendo por isso, e segundo me parece, simples fruto de fantasia local. De qualquer modo, Casal dos Rafaéis tem teimado em manter-se, tendendo, porém, a ficar-se pela actual geração na medida em que os seus moradores deixaram de ter afinidades, mesmo longínquas, com a razão e origem daquele nome.
Rafaéis eram os meus antepassados por parte da avó materna. Rafael terá sido um trisavô, dono de parte – ou do todo – dos terrenos que envolviam a passagem que ficou como casal dos rafaéis.
Desde os limites a nascente, adjacentes ao Casal dos Salvadores, até aos que, a norte, davam para o Casal das Peraltas, era terra de cultura desses antepassados marcada, de certo, pela casa de habitação aí construída.
Deduzo que seria o avô da minha avó Vitória (Rafaela) o dono e porventura o morador primeiro desse casal.
Que seria Rafael, de nome ou de apelido, parece atestá-lo os nomes daqueles que ainda vim a conhecer.
A minha avó construiu aqui a sua casa na parte mais baixa do casal, enquanto umas primas dela, a Júlia e a Maria, habitaram mais acima. Sei que o pai destas mulheres se chamava Manuel Rafael e a filha Júlia era conhecida por Júlia Rafaela. Do meu bisavô não sei exactamente o nome mas se uma das filhas sendo Vitória da Conceição era mais conhecida por Vitória Rafaela e uma sua irmã dava também pelo nome de Olinda Rafaela, só podem descender, imediatamente, de um Rafael, penso eu.
Nada mais natural portanto, e naquela época, do que chamar-se a um sítio destes, Casal dos Rafaéis.
Claro que, de alto a baixo, começam a ser raros os que têm alguma afinidade com essa família, a qual, tudo o indica, foi a proprietária exclusiva desta zona, ao longo e desde o início do século dezanove.
Segundo me consta, até a parte norte da propriedade, na confluência a sul com a estrada, terá sido cedida pelo meu bisavô a um primo que era mudo, para ali construir a sua casa, depois de ter sido ajudado a criar, juntamente com outro irmão, também ele mudo, por esta família. É essa a razão porque aparece a conhecida casa do mudo lá no alto, a misturar-se com as casas da família dos Rafaéis.
Uma geração mais e ter-se-á apagado das memórias a razão de ser deste e de outros nomes, sobretudo quando se engendram planos toponímicos alheios a preocupações tradicionais - e culturais também – preocupados antes de mais com a satisfação de vaidades ou de favores.
Importava que, tal como estas, se não apagassem outras recordações pois de pequenas coisas se compõe a história de um lugar, e é quando se pretendem ou delas se necessita, que se percebe o valor de uma informação para sempre perdida.
Que saberá dizer do lugar onde mora o senhor António que adquiriu a casa do tio Rafael Garcia? E o que sabe o Sandro da Casa Cardador, onde habita? Porventura alguém lhe terá explicado que esse Cardador era o marido de uma neta do Manuel Rafael e filha da Júlia Rafaela, a Guilhermina?
E os terrenos de um e do outro lado da estrada, que eram do Francisco Dionísio, casado com a citada Júlia, e que foram penhorados por dívida a um chamado Palatruz, de Santa Cita, parte dos quais estão agora na posse do Sérgio Rosa e do irmão António e onde o primeiro construiu a sua casa. Saberão eles que há perto de duzentos anos aqui morou um tal Rafael que originou o nome tradicional da rua?
Mais acima eras o quinhão do Francisco Marques (Peixe) que casou com a Maria, também filha do Manuel Rafael. No local onde esteve a sua casa vive agora, em casa nova, o Teodoro. Do outro lado da rua foi a casa do Francisco Peixe (filho) e se uma parte é ainda morada de descendentes da família, outra há que já passou de mãos.
São pedaços da vida de um sítio que não conseguimos evitar que venham ao de cima quando os agitamos.
Como eu gostava que outros, noutros casais, noutras ruas, noutros sítios, não deixassem afogar no esquecimento factos e memórias que permitam compor o puzzle que dá corpo à nossa terra. E não há que esperar: quando mal nos descuidamos já não há “mais velhos” que nos contem o passado, porque o passado, convenhamos, somos já nós.

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