segunda-feira, 28 de julho de 2008

O ataque das melgas

Preparei-me para dormir, bem-disposto. Após dez minutos de leitura calma com o som do rádio em fundo, sem gritos nem batuques e nem sequer uma interrupção dando notícia de guerra, assalto ou desastre, as pálpebras começaram a pesar em sinal de que devia dar por finda a jornada daquele dia.
Arrumado o livro e apagada a luz, aguardei o fim da peça musical, desliguei o rádio e eis-me, consolado, a procurar o melhor jeito de me entregar nas asas do sono.
E naquele ponto que ainda não é bem adormecimento, nem vigília, o meu cérebro acusa a presença de uma melodia, que ora se aproxima, ora se afasta, melodia que pouco a pouco se assemelha ao som de sirenes e já vejo o aproximar de bombeiros, os pirilampos das ambulâncias a brilhar. Agora já não são bombeiros, são polícias, zuuuum, zuuuum... e acordo.
Não são bombeiros nem são polícias, não senhor, é uma melga que resolveu incomodar-me, e mais nada.
Sacudo o lençol para afastar a intrusa e preparo-me para adormecer de novo.
Mal me consertava sob o lençol e... zuuuum, zuuuum, lá estava ela outra vez, bem perto do meu ouvido. Estás no ponto, pensei, e desfechei com quanta coragem tinha uma sonora bofetada na minha própria cara, que a melga estava mesmo a pedi-las. Desconsolo: ficou-me a cara a arder, mas de melga nem sinal.
Se ela tem vergonha, pensei eu, já viu que não lhe vou dar descanso. Zuuuum, zuuuum...
Viro-me de novo na cama, tapo a cara com o lençol, mas nem assim; chega a parecer-me que a malvada se introduz por debaixo da roupa.
Então tomo uma decisão: acendo a luz e vou procurá-la por tudo quanto é sítio pelo quarto fora. Lá está ela, pousada na parede, meia encoberta com o cortinado da janela. Olá! Já vás ver como elas te mordem! E puxando da almofada, atiro-lha acima com quanta força tenho. E foi com um sentimento de vitória que a vi espaparrada na parede, envolvida numa mancha de sangue.
Sangue meu! penso, e fico ainda mais contente por ter dado cabo da intrusa, da vampira que transfegara das minhas veias para a sua pança, parte de mim próprio.
Que não choque ninguém a minha afirmação, mas não gosto de melgas! Que é que querem, não gosto! Prefiro mil vezes as abelhas e digo porquê: a abelha é um ser quase civilizado. A abelha tem convicções, tanto assim que morre logo que nos morde (ou pica?). Ora, só alguém convicto dos seus princípios e certo dos seus propósitos, procede assim. A melga não, mói-nos o juízo com o seu sibilar permanente, incomoda-nos com os seus voos rasantes sobre a nossa cara, desenvolve-se em locais pútridos e chupa-nos o sangue pela calada da noite, em plena escuridão, de forma cobarde. A abelha é diferente e porque tem outros princípios, trabalha de dia e repousa de noite; faz alguma coisa de jeito, afinal.
Era cogitando nestas verdades que ia agora descansar por fim. Nada pior do que aquela angústia, aquela incomodidade, de querer dormir e um insecto mesquinho, desprezível, uma coisa minúscula, não nos deixar.
Ah que calma, que sossego.
Volto-me para o local onde matei a melga e vejo agora a mancha de sangue a crescer, a crescer, e dois olhos que se desenvolvem e me fitam, ameaçadores. Estremeço, levo as mãos à cara e oiço de novo, zuuuum...zuuuum...zuuuum. e pela música, agora é mais que uma. Acendo a luz e nada, sumiram-se. Tento de novo dormir e qual quê? a ameaça é cada vez maior. Apercebo-me de cada vez que fico às escuras, que elas vêem lançadas em voo picado, do tecto em direcção ao meu rosto. Mas mal acendo o candeeiro elas somem-se, eclipsam-se, mas logo regressam, as malditas.
Sinto-me tentado a desistir, e não tivesse este problema de falta de ar, escondia-me de todo debaixo do cobertor.
Tudo me leva a acreditar que vieram para vingar a irmã ou talvez para lhe fazer o velório. Se calhar as melgas não são assim tão selvagens como eu pensava.
Incapaz de vence-las, saio da cama, tranco a porta e fecho-me no outro quarto, sempre às escuras, talvez elas não se apercebam da minha fuga e não tenham tempo de me perseguir.
Boa-noite.

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