quarta-feira, 30 de julho de 2008

A obra do sétimo dia

Há muito, muito tempo, tanto que já ninguém se lembra e ao certo também não sabe quando, Deus povoou a terra com tudo quanto lhe deu na veneta. Era assim: não havia nada e Ele percebendo o jeito que tinha, criou, criou, criou... e encheu o planeta.
Mais ou menos, é bom de ver; outros vieram depois e também criaram, criaram, criaram... mas não inventaram coisa nenhuma. Umas cópias só. Mas sempre convencidos de que aperfeiçoaram de alguma forma o original, mais não fizeram do que reles sucedâneos de um modelo único.
Na altura, Deus fez os peixes e espalhou-os nas águas; soprou as aves para que se habituassem a viver nos céus; e pespegou o resto da criação na terra firme. E disse à multidão que acabara de inventar: governai-vos, que era como quem dissesse, cabem aí todos, arrumem-se, façam pela vida, mas não me venham com chatices, que se não fosse eu, continuariam eternamente menos que nada.
Cada um no seu canto, viveram assim, sossegados, quietinhos, muito, muito tempo. Não desarrumaram nada do que o criador tinha composto, e até tremiam se tinham de tocar-lhe. Não conspurcaram nada; não destruíram nada.
E quando se comiam uns aos outros, faziam-no no estrito cumprimento das ordens recebidas: Crescei! e também: Multiplicai-vos!
Um dos seres criados, - segundo rezam as crónicas, o último a ser criado – cedo se julgou superior a todos os outros, vivessem eles no ar, na água ou na terra. Tudo indicia que tinha razão para pensar assim, tais as mordomias de que beneficiava, ao ponto de Deus lhe ter dado um jardinzinho com horta e pomar agregados, onde só tinha que estender a mão para obter tudo o que queria. Ora, quem é que, em tais condições, não havia de achar-se rei da criação?
Mas logo, aí, fez asneira, porque, tudo o que queria, como atrás se refere, não era bem assim, visto que o Criador lhe impôs limites que ele não viu com bons olhos, e vai daí, sem ordem deitou mão à fruta que não lhe pertencia e zás! foi corrido e lá se foi a boa-vida.
Ainda assim, não se acabou ali a sua mania de superioridade. Condenado a ter que suar se quisesse comer, achou que havia de encontrar tansos à sua volta e, desse modo, foi procurando forma de ludibriar o parceiro; se fosse possível, que suassem outros para lhe satisfazer a gula e as manhas. De qualquer modo, havia de encontrar forma de se servir.
Olhou, por exemplo, para o mar e vendo a riqueza que ali estava, entrou por ele dentro – ou mandou entrar, que era mais fácil e menos perigoso - para que não lhe faltasse o peixe que lhe foi enchendo a pança e a carteira. Viu florestas verdejantes, prenhes de madeiras ricas que lhe dariam fortunas e sacou delas tudo quanto pôde, a pretexto das necessidades dos povos, e tornou as florestas em desertos. Cheirou-lhe a petróleo, indispensável à satisfação de necessidades que ele mesmo criou e então furou o chão e contaminou os ares a ponto de, aceleradamente, ir tornando a terra inabitável. A sua sanha exploratória fez fugir a água e transformou os rios onde os peixes abundavam nas águas que deleitavam os homens, em esgotos pútridos e focos de envenenamento para homens e para peixes.
Mas essa desgraça, que Deus certamente não terá previsto, logo deu nova ideia aos espertos: se a água não presta, recolhe-se a que ainda resta e vende-se. E foram-se a fontes e lagos e engarrafaram-na e venderam-na a quem tem sede, pelo preço que lhes apeteceu.
E foi assim que os bens que o bom Criador deixou, foram aproveitados pelos espertos e criativos. Aos outros mais não resta do que pagar para servir-se, servindo-os.
Vai restando, por enquanto, o ar que se respira. Mas, cada vez mais envenenado, não tardarão a engarrafa-lo e quem não quiser “bater o pernil” com falta do dito, há-de pagá-lo bem pago. Os oportunistas provarão que só o seu é bom, ao mesmo tempo que farão tudo para poluir o do vizinho.
Mas alegremo-nos porque restam ainda algumas obras da criação, certamente porque não conseguiram deitar-lhe a mão. Não será por muito tempo, esperem-lhe pela pancada.
É o caso do vento, por exemplo. Não fosse ele indomável e já o teriam encerrado entre quatro paredes, não deixando a mais leve brisa para quem não fosse do clube da ventania. E entretanto, o negócio das ventoinhas subiria em flecha.
E o sol, se pudessem haviam de açambarcá-lo e de nada valeria o desabafo do filósofo: ”não me tires o que não me podes dar”, ou a afirmação de que “o sol quando nasce é para todos”, pois já alguém teria descoberto que apanhar luz do sol não passa de um vício, e como quem não tem dinheiro não tem vícios...
E o que dizer dos raios e dos trovões? Não descobriram ainda forma de apropriação do barulho das trovoadas, talvez porque não é dos ruídos mais simpáticos, mas não fosse o medo de guardar em casa os raios que rasgam o céu de alto a baixo e já alguém teria encontrado forma de lhes reter a energia, para venda em frasquinhos ou granadas de arremesso.
Deus Nosso Senhor já terá dito lá com os cabelos brancos do seu bigode: Porque não dei eu por terminada a criação ao quinto dia?

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