segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Licença de condução de velocípedes

Há cinquenta anos uma bicicleta não era um utensílio de recreio ou de brincadeira, ou destinado a exercício físico nas manhãs dos dias de folga. Era, na maior parte dos casos útil ferramenta, único meio de transporte só acessível a alguns.
Também a sonhava para mim, mas os meios tardaram a chegar. Passava sem ela, que remédio…
Para o trabalho, que era ali, na Matrena, a três quilómetros, fazia-o a pé. (Depois, quando éramos já todos ricos, cada um ia no seu automóvel)
Para casa da namorada, lá mais adiante, na ponta da Guerreira, ia também a pé; uma ou noutra vez na carreira que vinha de Abrantes. Era novo e habituado com estava, dominava bem a distância.
Mas que a desejava, desejava. Às vezes dava comigo a fazer contas sobre quanto deixaria de gastar em solas de sapatos se fizesse estes trajectos de bicicleta. Ficava-me por aí, pelo desejo, porque os meios não davam para mais.
Poupando tostão daqui ou dali, consegui juntar o necessário para comprar o desejado objecto. Era o adquirir de uma certa independência.
Faltava agora licença para a sua utilização. Para o efeito dirigi-me à Câmara num dia vinte e seis de Dezembro, tenho-o bem presente.
Atendido correctamente – pareceu-me, pelo menos - o funcionário fez-me algumas perguntas acerca de sinais de trânsito. Tive azar com as que me calharam, já que nem um sinal daqueles conhecia. É verdade que ninguém me tinha dito que tal teste se fazia e, por isso, eu não estudara minimamente o código.
A certa altura diz-me o funcionário, adaptado a examinador: - A tua sorte é ter sido ontem dia de Natal!
A mim, pouco me importava a razão porque ele me passava a licença de condução de velocípedes. Eu só queria tê-la na mão. Daí, muito obrigado e ala, que se faz tarde.
Vim a saber que, de facto, tivera sorte. Outros eram obrigados a dar voltas e voltinhas cá em baixo, na praça, para gáudio dos funcionários que observavam o espectáculo das janelas: - Agora p’rá direita! Vire agora p’rá esquerda! Agora faça um oito… faça um oito!